quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O ouro do Tejo




O presente texto não pretende nem pode pretender ser um documento exaustivo nem rigoroso, pela simples razão de que o seu autor não está "certificado" para tal. Deve ser lido sob esta reserva e entendido apenas como um contributo interessado, na tentativa de descobrir pistas para a compreensão do que foi — ou pode ter sido — o passado de uma parte da população do território onde nascemos.


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Recordamo-nos de ouvir histórias relacionadas com pessoas que no passado se dedicaram à pesquisa do ouro na freguesia de Belver, em especial no curso inferior da Ribeira de Canas.
Algumas viagens por zonas próximas e a procura em diversas fontes de informação revelaram-nos a presença de importantes vestígios de exploração aurífera a céu aberto na Ribeira de Codes, principalmente no concelho de Vila de Rei e também, em menor escala, no de Mação.
A curiosidade pelas ciências da Terra, em especial a geologia, permitiu-nos relacionar, ainda que de uma forma que não se presume  rigorosa, as características dos locais desses vestígios com outros locais próximos, situados na mesma estrutura geológica e formular a hipótese de também existirem, nestes últimos, na freguesia de Belver, depósitos de aluvião semelhantes àqueles no passado explorados, podendo eles ser a origem das pequenas quantidades de ouro que, segundo a tradição oral, foram no passado retiradas da Ribeira de Canas e de outros locais da freguesia.


 (Foi consultada bibliografia dispersa, especialmente na Internet.)



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Olhando de relance para a Carta Geológica, nas regiões de Milreu, Codes, Mação e também na freguesia de Belver, verifica-se a ocorrência de dois tipos de conglomerados que, nas zonas referidas situadas mais a Oeste, estão quase sempre associados. Pela topografia suposta ou conhecida, parece que os conglomerados de Lousa (P_Lo) estão subjacentes aos conglomerados de Mação (P_M).

Apesar de a carta não o indicar expressamente para as zonas mais a Leste (freguesia de Belver), fica ainda a possibilidade de que a mesma situação ocorra, apesar de não se encontrar assinalada (talvez por não ser evidente ou estar insuficientemente verificada?).
As conheiras assinaladas (e não estarão todas na carta) situam-se todas elas nos Conglomerados da Lousa. Sendo esses conglomerados os que estão em posição inferior, mais próximos do substrato rochoso, pode-se considerar a hipótese de existirem também nas regiões não assinaladas, próximo das zonas de contacto.

A existir algum ouro aluvial, ele estaria aí. A não existência de conheiras nas zonas a Leste não é, só por si, prova da não existência de depósitos. Significa apenas que eles não foram encontrados ou não foram procurados. Se encontrados, teriam provavelmente sido explorados, a menos que não fossem de todo rentáveis e, nesse caso, poucos vestígios teriam deixado. As conheiras encontradas são trabalhos de grande envergadura, para a sua escavação ter demorado dezenas e — quem sabe?— centenas de anos. Aquilo, foi escavado "à mão", não foi escavado com bulldozers... Pesquisas ocasionais e localizadas corresponderiam a pequenas escavações, rapidamente apagadas pela erosão. Assim, não podemos saber de todos os sítios onde procuraram.



Conheira do Caratão

A presença de ouro nos calhaus ("cascalho russo", rochas quartzíticas), é de outra natureza ou, melhor, é  a fase anterior da presença do metal. O ouro disseminado nos sedimentos (conglomerados) já é resultante da prévia erosão dos filões quartzíticos onde originalmente se acumulou. Devido ao seu elevado peso, tem tendência para se concentrar em certas zonas, dependendo da dinâmica fluvial presente no processo de transporte e deposição dos sedimentos. Se tivermos indicação de que uma determinada zona do sedimento corresponde à parte mais profunda do leito de uma corrente de água importante, é aí que é mais provável encontrar os depósitos. Por outro lado, o chamado "cascalho russo" aparece na nossa região na forma de filões ou intrusões nas rochas xistosas que constituem o substrato rochoso xisto-grauváquico (NC-P, Unidade Padrão da Silveira, como está referenciado. Em linguagem da região, é o terreno de "pedra lousinha" que está por baixo das areias e calhaus que constituem os conglomerados, sendo que outras formações que se encontrassem sobrepostas podem ter sido removidas pela erosão.

Há que ter presente que os aluviões (arcoses, conglomerados... etc...) são aqui muito mais recentes do que qualquer formação rochosa existente de natureza granítica ou xistosa.
Também é de observar que as formações que constituem a(s) serra(s) do Bando (da fronteira entre o Silúrico e o Devónico) são mais recentes do que todas as outras do substrato rochoso em redor, que se encontram em níveis inferiores. Não considerando os efeitos do enrugamento ou cavalgamentos, pode-se concluir que a serra do Bando é um vestígio que ficou. Nas outras zonas em redor, essas rochas devem ter existido (não faz nenhum sentido pensar que só existiram estas), mas foram entretanto removidas pela erosão (300 metros de camadas de rocha que foram levados pelo "Tejo", pelo menos junto a estas serras...). Desse processo, alguns sedimentos terão restado, e são esses que interessam ao nosso tema...


Serra do Bando (esq. de Codes; dir. dos Santos)

A folha 28-A (a que nos temos estado a referir) tem um critério de classificação diferente da 28-C (a sul desta) e apresenta uma legenda de identificação muito mais pormenorizada. (visualizador de mapas no GEO-PORTAL LNEG - http://geoportal.lneg.pt/geoportal/mapas/index.html).

Independentemente disso (e até pela mera observação) nos apercebemos de que a variedade litológica é muito maior a norte, bem como a complexidade da morfologia. É possível, sem sair das estradas asfaltadas, encontrar locais onde se encontram presentes, em poucas dezenas de metros, estruturas geológicas muito diferentes (zonas de contacto).

Os depósitos sedimentares da bacia do Tejo cobriram a dada altura toda esta zona até à actual cota de cerca de 300m. Os indícios disso estão na existência de uma planície virtual nesse nível, tanto numa como na outra margem, com formações detríticas correspondentes: os conglomerados de Mação e outros similares. Essa planície virtual é facilmente perceptível se nos colocarmos em pontos estratégicos, situados no topo da formação e observarmos em redor, por exemplo em Gavião, ou entre a Ortiga e Mação. A altitude aumenta (até aos 300 m) de Oeste para Leste, o que é concordante com a posição da bacia do Tejo, que corre de Leste para Oeste.
A colina conhecida como Pernada/Vale da Fonte, a norte da povoação da Areia, apresenta uma altitude próxima dos 300m. Os dois cabeços das Cabecinhas, a norte de Domingos da Vinha, já não passam dos 280-290m. A "charneca" que vai até próximo da Torre Cimeira, diminui dos 260 aos 240 metros e depois desaparece já perto do Tejo.

O ponto mais elevado desta formação parece ser próximo da Atalaia (Gavião), justamente nos 300 metros. No antigo aeródromo da Comenda (Polvorão), a altitude é de 275 metros, mas já não passa dos 180 metros nos Foros do Arrão.


Durante o processo erosivo que fez desaparecer as camadas rochosas atravessadas pelos filões quartzíticos — eventualmente aquelas que constituem ainda as Serras do Bando, ou outras — o metal que aí pudesse existir foi arrastado e ter-se-á depositado por gravidade em determinadas zonas dos sedimentos — alguns dos quais ainda permanecem nos seus lugares—, normalmente nas maiores profundidades dos leitos das correntes de água, como já antes foi referido.

É do conhecimento público que empresas mineiras canadianas se interessaram e procederam a prospecções na zona de Milreu (Vila de Rei), tendo dado publicidade à descoberta de elevados teores de minério, apontando para a eventual rentabilidade da exploração — os mercados e as cotações têm flutuações importantes... Até agora, ainda não foi feita exploração comercial naquelas zonas e, mesmo descontando a possibilidade de a publicidade feita por essas empresas ter também o objectivo de valorizar os seus títulos em bolsa, algo devem ter encontrado. E, do passado, as evidências arqueológicas estão lá. Ninguém teria deslocado tantos calhaus se não fosse encontrando algo para compensar o trabalho feito. A Barragem do Souto do Penedo, bem como os restos do canal que levava a água para as conheiras, ainda lá estão, ao lado da EN2 — para não falar das enormes conheiras, das quais a água conseguiu arrastar impressionante quantidade de material, formando o fundo plano da Ribeira de Codes, que se pode observar do viaduto da mesma EN2, a sul de Milreu.

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Algumas ideias e iniciativas interessantes já tiveram expressão prática no reavivar das memórias da nossa terra. Elas tiveram pernas para andar e tiveram o impulso de quem as pôs em movimento e organizou os meios para lhes dar expressão. Uma ideia começa muito pequenina, mas, se tiver algo de concreto para a sustentar, ela vai crescer e aguentar-se de pé. Mas não basta deitar-lhe artificialmente adubo. É preciso que a semente seja genuína para que possa germinar.
Neste caso dos eventuais "trilhos do ouro", parece-me necessário, com alguma urgência — antes que desapareçam todos os que ainda podem conservar alguma memória pessoal ou próxima — fazer uma investigação junto da população mais idosa, nomeadamente nos Outeiros, mas eventualmente também na Areia e noutros lugares, onde ainda deve haver algumas pessoas que se recordem de algo mais corpóreo do que as histórias que ouvimos contar, por vezes eivadas de mais ou menos fantasia. E é sabido que a fantasia tem sempre tendência para alimentar as nossas expectativas e ao mesmo tempo que se alimenta também delas; um círculo vicioso…
Mas as histórias não são todas inventadas e algo de concreto tem de haver, para lá de toda a imaginação. Pode não ter a dimensão que teve noutros locais, não haver paisagens espectaculares de calhaus amontoados, como na Ribeira de Codes (ou até mesmo no Caratão, que muita gente esquece, talvez por estar isolada…).


Teria de se saber nomes, locais e até algumas datas. Se eles aparecerem, a coisa começa a tomar a autenticidade que merece. Quem foi que teve um pai, um avô, ou ele próprio a garimpar na ribeira? Que quantidades conseguiu recolher? A quem vendeu? Como era feito o negócio? Que ferramentas utilizavam? Ainda existe alguma? Talvez não… uma bateia pode ser uma simples bacia de lavar… um pequeno alguidar, a tampa grande de uma panela… Talvez se usassem uma pá, uma enxada para remover o barro. Qual era a técnica para encontrar os melhores locais? Iam experimentando até encontrar ou tinham uma ideia dos locais mais prováveis?
Que documentação concreta existe sobre a actividade nos arquivos da Câmara Municipal, ou noutros? Que documentação histórica ou literatura de investigação existe sobre o assunto?
Isto não é coisa que dê para museu, mas talvez dê para trilho. Um passeio até ao Outeiro, atravessando a ribeira na ponte medieval (ainda lá deve estar). Os trilhos do ouro da Ribeira de Canas, que tal?...
A melhor prova era conseguir uma descoberta. Não se pode negar a existência daquilo que há…
Quanto às cavernas existentes, elas podiam não ter servido para extracção de outro, mas de outros metais. Não foi referida a existência de pirite ferrosa no interior das ditas?

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(Uma pequena nota, um interregno, para falar de uma possível e bastante provável metalurgia artesanal do ferro? Os nomes das "Ferrarias" — há tantas — não surgiram por acaso… Obtinha-se o metal e forjavam-se depois com ele as alfaias… Ao fundo da Herdade da Marchuqueira, abaixo da Ferraria e do Vale da Vinha, detrás dos antigos lagares da Casa Rebelo, ainda é possível encontrar restos de escórias metálicas. Mas o maior depósito, grande mesmo, a uma escala mais do que artesanal — devia ser uma pequena indústria — estava junto à Ribeira do Sor, abaixo da foz da Ribeira de Margem. A quantidade de escórias era de tal ordem que foi aproveitada pela Câmara Municipal de Gavião para com elas fazer pavimentação de caminhos, uma vez que os tornavam muito menos lamacentos, por permitirem um bom escoamento da água e não terem nenhuma viscosidade. Recordo-me de todas ou quase todas as ruas de Domingos da Vinha estarem pavimentadas com esse material, antes de lhes terem colocado o asfalto que agora têm. Mais tarde, já depois de viver nesta freguesia (Margem), visitei o local do depósito e tive oportunidade de recolher amostras que ainda ali encontrei, de escórias de várias densidades, algumas delas fortemente magnetizáveis — são atraídas por um íman, evidência de que contêm ferro — e outras tendo agregado material cerâmico, tipo tijolo, talvez tendo feito parte de um recipiente ou fornalha. Seria interessante saber de onde era extraído o minério. Provavelmente, não viria de muito longe. As dificuldades do transporte nessa altura não justificariam trazer pedras de grandes distâncias...)



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Estas terras talvez acabem por se despovoar — a tendência actual para aí aponta e  sua majestade o eucalipto quer ficar senhor deste reino — mas por enquanto nós ainda cá estamos, os nossos filhos estão ou vêm de visita e, mesmo que deixem de vir, hão-de gostar de saber que, no tempo dos seus antepassados não muito longínquos, vivia aqui muita gente, que teve de aprender artes tão variadas na difícil arte de sobreviver num meio tão pobre. Antigamente não se emigrava. Nascia-se e morria-se na mesma cama ou no mesmo palheiro, sem nunca ter visto o mar ou o comboio a vapor. Trabalhava-se de sol a sol por dez réis ou até só por uma côdea de pão todos os dias — e ainda era preciso agradecer bastante e pedir a bênção aos padrinhos assim generosos.


Os minérios, especialmente os preciosos e, acima de todos, o ouro, sempre alimentaram o sonho e a fantasia. Se, para além disso, puderem alimentar uma História autêntica e documentada, tanto melhor.