domingo, 22 de janeiro de 2017

O polvo que abre o frasco






Às vezes, uma experiência mostra uma coisa diferente daquilo que parece mostrar (o que não quer dizer que mostra exactamente o contrário). Isso pode ser o normal resultado de um conjunto de circunstâncias aleatórias (o acaso) ou pode acontecer que a experiência esteja manipulada para produzir o efeito desejado. Se a nossa atitude for de um razoável cepticismo e tivermos alguns conhecimentos sobre o que estamos a ver, não seremos enganados — não tiraremos a conclusão pretendida por quem nos mostra a "experiência", mas outra quiçá mais próxima da realidade.
Um polvo é colocado dentro de um frasco, por sua vez dentro de um aquário ou tanque. O frasco é fechado com uma tampa roscada, tendo pintadas umas setas para indicar ajudar a perceber a rotação. A tampa não é fechada com muito aperto para que, como é compreensível, o polvo possa "fazer" aquilo que se quer mostrar que ele faz: que ele consegue abrir o frasco e escapar. Parecendo que ele cumpriu a primeira parte, ver-se-á no final que ele não saiu do frasco. Ele gosta de se acomodar em cavidades, mas desde que não estejam totalmente fechadas. A parte menos rigorosa da demonstração consiste na rotação da tampa do frasco. O autor pretende mostrar que o polvo aprende a rodar a tampa, o que supõe ele saber também que, rodando num determinado sentido, ela se abrirá. O polvo estaria a fazer aquilo intencionalmente. Mas talvez não esteja, pelo menos ao princípio: ao ver-se encerrado, sem possibilidade de escapar (isso, percebe ele muito bem), começa a mexer-se de forma aleatória, tentando interagir com o recipiente para o reabrir, explorando as possibilidades. Ele empurra e arrasta não só a tampa, mas qualquer superfície com a qual consiga entrar em contacto, o que inclui, naturalmente, a tampa do frasco. Ah, mas ele roda-a para o lado correcto — dirá o espectador mais crédulo. Ele sabe para que lado rodar. Sabe?
Vejamos, para que a tampa rode, ele terá de exercer alguma pressão sobre ela. Como não existe nenhuma parte que ele possa empurrar, ele desloca-a por atrito. Mas ele, além da pressão, tem uma capacidade adicional: a sucção das ventosas, que lhe permite aderir às superfícies sobre as quais são aplicadas. Com isso, pode atrair para si a tampa e, aliviando a pressão que ela iria exercer sobre a rosca se apenas empurrasse — o que a impediria de rodar —, deixá-la como que a flutuar. Se, ao mesmo tempo, girar a parte do corpo que está em contacto com a tampa, ela irá girar também. Isso não acontece de forma contínua, porque ele faz movimentos aleatórios (embora aos mais crédulos pareçam conscientes e intencionais). Se ele girar no sentido em que a tampa se fecha (o que também se vê acontecer no vídeo), ela não se moverá com tanta facilidade, porque é muito maior a probabilidade de ficar a fazer pressão sobre a rosca. Quando ele gira no sentido em que a tampa se abre, a tampa ficará mais vezes a flutuar e, com isso, o movimento fica facilitado. É uma questão de probabilidades.
Mas temos de conceder que o polvo tem a capacidade de aprender por tentativa e erro. Se ele perceber que determinados movimentos — e até, para maior complexidade, determinada conjugação de movimentos — fazem com que a tampa se mova afastando-se, vai alterar o seu comportamento, adequando-o ao meio sobre o qual interage.
Nem tudo é casualidade no modo como o frasco abre. Mas não é, de forma alguma, o resultado exclusivo de um acto premeditado.
O polvo abre o frasco não por saber como abri-lo, mas por conseguir aprender a fazê-lo. Se isso aconteceu por algumas circunstâncias terem sido mais favoráveis… isso nada tem de extraordinário. Afinal, a sorte sempre ajuda, o azar sempre contraria. Não ficou cem por cento demonstrado que o polvo aprendeu a abrir o frasco. Para os cépticos, nunca poderia ser demonstrado que ele já sabia como fazê-lo. Mas é extraordinário que consiga aprender a adaptar o seu comportamento, lá isso é.
No vídeo, nós vemos uma parte da relação que existe entre o polvo e aquele frasco, mas não a vemos toda. Quando a tampa é colocada, o polvo parece não estar a fazer nada para tentar sair, o que lhe seria fácil. É sabido que os polvos gostam de se alojar em cavidades, o que muito bem sabem os pescadores, ao oferecerem-lhes recipientes onde se esconder — e posteriormente serem capturados, porque o Homem tem maior capacidade de previsão do que o polvo… O frasco poderia muito bem já estar ali há algum tempo. O polvo já o considerava o seu esconderijo. A tampa foi um elemento estranho que importava remover, especialmente porque fechava a saída do esconderijo, o que o polvo sempre detecta e de imediato tenta resolver. Por falta de dados concretos, não sabemos como o polvo reage às cores. A tampa era vermelha. Era seguramente bastante diferente do resto do frasco. Se tivesse sido colocada uma tampa de material transparente que, simultaneamente, não fechasse totalmente a saída — por ter algum orifício suficientemente largo — talvez o polvo nem tivesse feito nada. Afinal, ele expulsou a tampa, mas permaneceu dentro do frasco (apesar de o título ser "Octopus Escapes Jar"). Ele não queria simplesmente escapar. Ele queria poder escapar quando necessário. A tampa veio ameaçar essa possibilidade. Por isso ele a removeu. Mas o polvo é um animal de inteligência mais evoluída. Muito poucos outros bichos, admitindo que eram capazes de abrir um recipiente onde tivessem sido encerrados, teriam ficado do local. Teriam antes fugido, aterrorizados. Ele ficou. As circunstâncias mudaram, voltaram a não ser ameaçadoras. A palavra-chave para o polvo é a adaptabilidade... (*)
A experiência está manipulada, mas isso apenas se pretendeu demonstrar que o polvo sabia, desde o início, como abrir o frasco (até porque podia já ter sido ensinado…). É, por outro lado, inconclusiva, se pretendeu demonstrar que o polvo aprendeu a abrir o frasco. A abertura pode ter resultado de circunstâncias aleatórias mais favoráveis (era mais fácil ao polvo abrir o frasco do que fechá-lo). Que o polvo é mais inteligente do que grande parte da bicharada, também parece estar fora de questão.
Depois de ler este texto, parece que não se chegou a conclusão alguma. O leitor podia esperar que se quisesse desmentir a visível intenção de quem fez o vídeo. Mas não é assim. A única demonstração que aqui se pretende fazer é a de que as coisas evidentes que vemos quase nunca são tão evidentes como parecem.
O polvo é que a sabe toda… Tentem lá encarcerá-lo...



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(*) Um comentário que está no YouTube diz a maior parte disto gastando menos tinta:

I like how in the end he's like "actually I'm pretty comfy here, I just wanted you to know I can leave whenever I want".


quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

O ouro do Tejo




O presente texto não pretende nem pode pretender ser um documento exaustivo nem rigoroso, pela simples razão de que o seu autor não está "certificado" para tal. Deve ser lido sob esta reserva e entendido apenas como um contributo interessado, na tentativa de descobrir pistas para a compreensão do que foi — ou pode ter sido — o passado de uma parte da população do território onde nascemos.


* * *

Recordamo-nos de ouvir histórias relacionadas com pessoas que no passado se dedicaram à pesquisa do ouro na freguesia de Belver, em especial no curso inferior da Ribeira de Canas.
Algumas viagens por zonas próximas e a procura em diversas fontes de informação revelaram-nos a presença de importantes vestígios de exploração aurífera a céu aberto na Ribeira de Codes, principalmente no concelho de Vila de Rei e também, em menor escala, no de Mação.
A curiosidade pelas ciências da Terra, em especial a geologia, permitiu-nos relacionar, ainda que de uma forma que não se presume  rigorosa, as características dos locais desses vestígios com outros locais próximos, situados na mesma estrutura geológica e formular a hipótese de também existirem, nestes últimos, na freguesia de Belver, depósitos de aluvião semelhantes àqueles no passado explorados, podendo eles ser a origem das pequenas quantidades de ouro que, segundo a tradição oral, foram no passado retiradas da Ribeira de Canas e de outros locais da freguesia.


 (Foi consultada bibliografia dispersa, especialmente na Internet.)



* * *


Olhando de relance para a Carta Geológica, nas regiões de Milreu, Codes, Mação e também na freguesia de Belver, verifica-se a ocorrência de dois tipos de conglomerados que, nas zonas referidas situadas mais a Oeste, estão quase sempre associados. Pela topografia suposta ou conhecida, parece que os conglomerados de Lousa (P_Lo) estão subjacentes aos conglomerados de Mação (P_M).

Apesar de a carta não o indicar expressamente para as zonas mais a Leste (freguesia de Belver), fica ainda a possibilidade de que a mesma situação ocorra, apesar de não se encontrar assinalada (talvez por não ser evidente ou estar insuficientemente verificada?).
As conheiras assinaladas (e não estarão todas na carta) situam-se todas elas nos Conglomerados da Lousa. Sendo esses conglomerados os que estão em posição inferior, mais próximos do substrato rochoso, pode-se considerar a hipótese de existirem também nas regiões não assinaladas, próximo das zonas de contacto.

A existir algum ouro aluvial, ele estaria aí. A não existência de conheiras nas zonas a Leste não é, só por si, prova da não existência de depósitos. Significa apenas que eles não foram encontrados ou não foram procurados. Se encontrados, teriam provavelmente sido explorados, a menos que não fossem de todo rentáveis e, nesse caso, poucos vestígios teriam deixado. As conheiras encontradas são trabalhos de grande envergadura, para a sua escavação ter demorado dezenas e — quem sabe?— centenas de anos. Aquilo, foi escavado "à mão", não foi escavado com bulldozers... Pesquisas ocasionais e localizadas corresponderiam a pequenas escavações, rapidamente apagadas pela erosão. Assim, não podemos saber de todos os sítios onde procuraram.



Conheira do Caratão

A presença de ouro nos calhaus ("cascalho russo", rochas quartzíticas), é de outra natureza ou, melhor, é  a fase anterior da presença do metal. O ouro disseminado nos sedimentos (conglomerados) já é resultante da prévia erosão dos filões quartzíticos onde originalmente se acumulou. Devido ao seu elevado peso, tem tendência para se concentrar em certas zonas, dependendo da dinâmica fluvial presente no processo de transporte e deposição dos sedimentos. Se tivermos indicação de que uma determinada zona do sedimento corresponde à parte mais profunda do leito de uma corrente de água importante, é aí que é mais provável encontrar os depósitos. Por outro lado, o chamado "cascalho russo" aparece na nossa região na forma de filões ou intrusões nas rochas xistosas que constituem o substrato rochoso xisto-grauváquico (NC-P, Unidade Padrão da Silveira, como está referenciado. Em linguagem da região, é o terreno de "pedra lousinha" que está por baixo das areias e calhaus que constituem os conglomerados, sendo que outras formações que se encontrassem sobrepostas podem ter sido removidas pela erosão.

Há que ter presente que os aluviões (arcoses, conglomerados... etc...) são aqui muito mais recentes do que qualquer formação rochosa existente de natureza granítica ou xistosa.
Também é de observar que as formações que constituem a(s) serra(s) do Bando (da fronteira entre o Silúrico e o Devónico) são mais recentes do que todas as outras do substrato rochoso em redor, que se encontram em níveis inferiores. Não considerando os efeitos do enrugamento ou cavalgamentos, pode-se concluir que a serra do Bando é um vestígio que ficou. Nas outras zonas em redor, essas rochas devem ter existido (não faz nenhum sentido pensar que só existiram estas), mas foram entretanto removidas pela erosão (300 metros de camadas de rocha que foram levados pelo "Tejo", pelo menos junto a estas serras...). Desse processo, alguns sedimentos terão restado, e são esses que interessam ao nosso tema...


Serra do Bando (esq. de Codes; dir. dos Santos)

A folha 28-A (a que nos temos estado a referir) tem um critério de classificação diferente da 28-C (a sul desta) e apresenta uma legenda de identificação muito mais pormenorizada. (visualizador de mapas no GEO-PORTAL LNEG - http://geoportal.lneg.pt/geoportal/mapas/index.html).

Independentemente disso (e até pela mera observação) nos apercebemos de que a variedade litológica é muito maior a norte, bem como a complexidade da morfologia. É possível, sem sair das estradas asfaltadas, encontrar locais onde se encontram presentes, em poucas dezenas de metros, estruturas geológicas muito diferentes (zonas de contacto).

Os depósitos sedimentares da bacia do Tejo cobriram a dada altura toda esta zona até à actual cota de cerca de 300m. Os indícios disso estão na existência de uma planície virtual nesse nível, tanto numa como na outra margem, com formações detríticas correspondentes: os conglomerados de Mação e outros similares. Essa planície virtual é facilmente perceptível se nos colocarmos em pontos estratégicos, situados no topo da formação e observarmos em redor, por exemplo em Gavião, ou entre a Ortiga e Mação. A altitude aumenta (até aos 300 m) de Oeste para Leste, o que é concordante com a posição da bacia do Tejo, que corre de Leste para Oeste.
A colina conhecida como Pernada/Vale da Fonte, a norte da povoação da Areia, apresenta uma altitude próxima dos 300m. Os dois cabeços das Cabecinhas, a norte de Domingos da Vinha, já não passam dos 280-290m. A "charneca" que vai até próximo da Torre Cimeira, diminui dos 260 aos 240 metros e depois desaparece já perto do Tejo.

O ponto mais elevado desta formação parece ser próximo da Atalaia (Gavião), justamente nos 300 metros. No antigo aeródromo da Comenda (Polvorão), a altitude é de 275 metros, mas já não passa dos 180 metros nos Foros do Arrão.


Durante o processo erosivo que fez desaparecer as camadas rochosas atravessadas pelos filões quartzíticos — eventualmente aquelas que constituem ainda as Serras do Bando, ou outras — o metal que aí pudesse existir foi arrastado e ter-se-á depositado por gravidade em determinadas zonas dos sedimentos — alguns dos quais ainda permanecem nos seus lugares—, normalmente nas maiores profundidades dos leitos das correntes de água, como já antes foi referido.

É do conhecimento público que empresas mineiras canadianas se interessaram e procederam a prospecções na zona de Milreu (Vila de Rei), tendo dado publicidade à descoberta de elevados teores de minério, apontando para a eventual rentabilidade da exploração — os mercados e as cotações têm flutuações importantes... Até agora, ainda não foi feita exploração comercial naquelas zonas e, mesmo descontando a possibilidade de a publicidade feita por essas empresas ter também o objectivo de valorizar os seus títulos em bolsa, algo devem ter encontrado. E, do passado, as evidências arqueológicas estão lá. Ninguém teria deslocado tantos calhaus se não fosse encontrando algo para compensar o trabalho feito. A Barragem do Souto do Penedo, bem como os restos do canal que levava a água para as conheiras, ainda lá estão, ao lado da EN2 — para não falar das enormes conheiras, das quais a água conseguiu arrastar impressionante quantidade de material, formando o fundo plano da Ribeira de Codes, que se pode observar do viaduto da mesma EN2, a sul de Milreu.

* * * 

Algumas ideias e iniciativas interessantes já tiveram expressão prática no reavivar das memórias da nossa terra. Elas tiveram pernas para andar e tiveram o impulso de quem as pôs em movimento e organizou os meios para lhes dar expressão. Uma ideia começa muito pequenina, mas, se tiver algo de concreto para a sustentar, ela vai crescer e aguentar-se de pé. Mas não basta deitar-lhe artificialmente adubo. É preciso que a semente seja genuína para que possa germinar.
Neste caso dos eventuais "trilhos do ouro", parece-me necessário, com alguma urgência — antes que desapareçam todos os que ainda podem conservar alguma memória pessoal ou próxima — fazer uma investigação junto da população mais idosa, nomeadamente nos Outeiros, mas eventualmente também na Areia e noutros lugares, onde ainda deve haver algumas pessoas que se recordem de algo mais corpóreo do que as histórias que ouvimos contar, por vezes eivadas de mais ou menos fantasia. E é sabido que a fantasia tem sempre tendência para alimentar as nossas expectativas e ao mesmo tempo que se alimenta também delas; um círculo vicioso…
Mas as histórias não são todas inventadas e algo de concreto tem de haver, para lá de toda a imaginação. Pode não ter a dimensão que teve noutros locais, não haver paisagens espectaculares de calhaus amontoados, como na Ribeira de Codes (ou até mesmo no Caratão, que muita gente esquece, talvez por estar isolada…).


Teria de se saber nomes, locais e até algumas datas. Se eles aparecerem, a coisa começa a tomar a autenticidade que merece. Quem foi que teve um pai, um avô, ou ele próprio a garimpar na ribeira? Que quantidades conseguiu recolher? A quem vendeu? Como era feito o negócio? Que ferramentas utilizavam? Ainda existe alguma? Talvez não… uma bateia pode ser uma simples bacia de lavar… um pequeno alguidar, a tampa grande de uma panela… Talvez se usassem uma pá, uma enxada para remover o barro. Qual era a técnica para encontrar os melhores locais? Iam experimentando até encontrar ou tinham uma ideia dos locais mais prováveis?
Que documentação concreta existe sobre a actividade nos arquivos da Câmara Municipal, ou noutros? Que documentação histórica ou literatura de investigação existe sobre o assunto?
Isto não é coisa que dê para museu, mas talvez dê para trilho. Um passeio até ao Outeiro, atravessando a ribeira na ponte medieval (ainda lá deve estar). Os trilhos do ouro da Ribeira de Canas, que tal?...
A melhor prova era conseguir uma descoberta. Não se pode negar a existência daquilo que há…
Quanto às cavernas existentes, elas podiam não ter servido para extracção de outro, mas de outros metais. Não foi referida a existência de pirite ferrosa no interior das ditas?

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(Uma pequena nota, um interregno, para falar de uma possível e bastante provável metalurgia artesanal do ferro? Os nomes das "Ferrarias" — há tantas — não surgiram por acaso… Obtinha-se o metal e forjavam-se depois com ele as alfaias… Ao fundo da Herdade da Marchuqueira, abaixo da Ferraria e do Vale da Vinha, detrás dos antigos lagares da Casa Rebelo, ainda é possível encontrar restos de escórias metálicas. Mas o maior depósito, grande mesmo, a uma escala mais do que artesanal — devia ser uma pequena indústria — estava junto à Ribeira do Sor, abaixo da foz da Ribeira de Margem. A quantidade de escórias era de tal ordem que foi aproveitada pela Câmara Municipal de Gavião para com elas fazer pavimentação de caminhos, uma vez que os tornavam muito menos lamacentos, por permitirem um bom escoamento da água e não terem nenhuma viscosidade. Recordo-me de todas ou quase todas as ruas de Domingos da Vinha estarem pavimentadas com esse material, antes de lhes terem colocado o asfalto que agora têm. Mais tarde, já depois de viver nesta freguesia (Margem), visitei o local do depósito e tive oportunidade de recolher amostras que ainda ali encontrei, de escórias de várias densidades, algumas delas fortemente magnetizáveis — são atraídas por um íman, evidência de que contêm ferro — e outras tendo agregado material cerâmico, tipo tijolo, talvez tendo feito parte de um recipiente ou fornalha. Seria interessante saber de onde era extraído o minério. Provavelmente, não viria de muito longe. As dificuldades do transporte nessa altura não justificariam trazer pedras de grandes distâncias...)



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Estas terras talvez acabem por se despovoar — a tendência actual para aí aponta e  sua majestade o eucalipto quer ficar senhor deste reino — mas por enquanto nós ainda cá estamos, os nossos filhos estão ou vêm de visita e, mesmo que deixem de vir, hão-de gostar de saber que, no tempo dos seus antepassados não muito longínquos, vivia aqui muita gente, que teve de aprender artes tão variadas na difícil arte de sobreviver num meio tão pobre. Antigamente não se emigrava. Nascia-se e morria-se na mesma cama ou no mesmo palheiro, sem nunca ter visto o mar ou o comboio a vapor. Trabalhava-se de sol a sol por dez réis ou até só por uma côdea de pão todos os dias — e ainda era preciso agradecer bastante e pedir a bênção aos padrinhos assim generosos.


Os minérios, especialmente os preciosos e, acima de todos, o ouro, sempre alimentaram o sonho e a fantasia. Se, para além disso, puderem alimentar uma História autêntica e documentada, tanto melhor.





domingo, 15 de janeiro de 2017

Ele não precisava de bolsos





Pergunta um tipo a outro:
«Responde-me lá a esta: porque é que o Salazar usava fatos sem bolsos?»
«Como?! Sem bolsos?»
«Sim, as calças e os casacos que ele usava não tinham bolsos…»
«Não sei… diz lá tu por que era…»
«Ele não precisava de bolsos para meter as mãos, porque metia as mãos nos bolsos dos outros…»


A história contava-se, mas está mal contada. Ou, melhor, está incompleta.
Então porque é que ele iria precisar de meter as mãos nos bolsos, dele próprio ou dos outros? Para as aquecer?
Ela contava-se para dar a entender que o homem ia ao bolso aos portugueses.
Entretanto confirmou-se que ele, quando morreu, não estava na penúria, mas também não deixou nada de jeito aos herdeiros. Ou seja: ele não enriqueceu com o poder durante mais de 50 anos. Mas se ele metia a mão no nosso bolso…

Pois é. É que ele metia a mão no bolso de uns para retirar. Depois, ia colocar o que tinha retirado no bolso de outros. Como o Robin dos Bosques, mas ao contrário. E entretanto deixava lá a mão para a aquecer. Era a forma de obter agradecimento.

Hoje parece que há muita gente que lhe está agradecida. Se as pessoas que lhe estão gratas por ele ter existido forem meter a mão no seu próprio bolso, verão que vão lá encontrar… a mão do morto, que ainda lá está, a aquecer. Vejam bem se encontram mais qualquer coisa...

sábado, 14 de janeiro de 2017

A gralha






Em defesa da gralha…
A gralha (ave aparentada com o corvo) não está em perigo de extinção. E, mesmo que estivesse, não era esse o tema, porque a gralha, aqui, é outra.
As gralhas na escrita ou, por extensão, as "gaffes" de comportamento ou ainda as bizarrias de comunicação — nada disso está em extinção.
Se isso é bom ou mau, eis a questão…
Se detectamos as gralhas (e especialmente se o fazemos notar…), somos uns picuínhas coca-bichinhos sempre prontos a assinalar o argueiro em vez da trave (até ia a escrever "agreiro", porque era assim que ouvia pronunciar na minha aldeia). Se não fazemos caso, somos uns desmazelados sem um pingo de respeito pelas regras…
Como diziam ali ao lado, façamos bem ou façamos mal, seremos sempre criticados. Assim, o melhor é mesmo seguir em frente e não ligar, o que nos valerá uma terceira opção: a alcunha de "narizes-empinados". Não há volta a dar. Não há mesmo.
Há tempos, li em qualquer lado que um aviso afixado, possivelmente numa sala de aula, a dizer "PEMSE" era muito mais eficaz do que se estivesse correctamente escrito como "PENSE" (até era "THIMK" por alternativa a "THINK",  se bem recordo).
Cá está aquilo de a capacidade do gato de apanhar ratos ser, dependendo das circunstâncias, mais importante do que a cor do seu pelo… Eficácia. A eficácia é algo que depende de objectivos. Se algo serve um propósito, é eficaz. Claro que às vezes o benefício obtido nem era procurado, mas não deixa de ser benéfico.
A gralha, como a desordem, introduz a nota discordante que estimula reacções, exactamente o contrário da rotina ou monotonia de um ambiente eternamente perfeito.
Daí que — suspeita minha, desconfiado encartado — nem todas as gralhas, "gaffes" e bizarrias com que somos presenteados se devam a distracção, falta de jeito ou ignorância dos seus autores. Alguns já usam técnicas menos convencionais. Chamar a atenção pode requerer truques, tantas são as vozes a solicitá-la...



quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

Indirectas


Imagem: Wikimedia Commons


Cada um ouve aquilo que quer ouvir…

Mandar indirectas no Facebook (ou em qualquer sítio onde se possa ser lido ou ouvido) é sujeitar-se a ser mal-interpretado. É certo que as indirectas vão sempre destinadas a alguém. São avisos à navegação, mas têm destinatários particulares que, em princípio, só o autor/emissor sabe quem são. Mas é evidente que, como sucede com todas as bocas, pode alguém não previsto achar-se injustamente aludido. Os mais desabridos vão logo dizer que o chapéu só serve a quem o enfia, mas outros dirão que quem não se sente não é filho de boa gente e entre as duas interpretações há todo um mar de indefinições onde é fácil alguma coisa naufragar.

Mas isto é a visão extremista da coisa…

No limite, se não pudéssemos dizer algo que se arrisque a ser interpretado como indirecta, ficaria muito pouca coisa que se pudesse dizer ou, então, teríamos todos de usar sempre linguagem de relatório de contas ou de contrato jurídico, sempre com um índice remissivo no final… uma seca dos diabos.

Assim, em que ficamos?...

Pois… em águas de bacalhau, que é como quem diz… deixa ver… bacalhau… Terra NovaAtlântico Norte… ehpah, aí foi onde se afundou o Titanic… e foi a pique por causa de alguém que andou a dizer coisas que não devia… mandaram bocas e calhou-lhes um iceberg pela frente… bom, foi de raspão mas o resultado foi o mesmo…



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As restrições à liberdade de expressão serão só aquelas que o próprio quiser impor.
Entre os indivíduos responsáveis, a expressão é um acto como outro qualquer: tem responsabilidades.
A irresponsabilidade só vigora entre os inimputáveis.


quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

Granada


Imagem: wikiHow, conforme legenda.

Sobre o Novo Banco, como a maioria dos portugueses, tenho uma opinião, se calhar pouco fundamentada. Mas tenho. Ela é generalista, difusa e resulta da falta de conhecimento que todos temos (incluindo, acho eu, as sumidades que têm o poder de decisão) sobre aquilo que pode vir a acontecer — e até sobre aquilo que aconteceu. O assunto é vasto, complexo e escondido por múltiplas cortinas de silêncio e de interesses nem sempre claros. Não podia ser de outra maneira.
Portanto, o que eu penso sobre o Novo Banco é mais um desejo do que uma opinião.
Concretamente, sobre a possível venda do Novo Banco.
Sobre a opção entre a venda e a nacionalização do Novo Banco.
Eu dou por adquirido que as garantias dadas pelo PM de que os contribuintes não vão ser afectados por aquilo que venha a acontecer ao Novo Banco não são garantia nenhuma. Se há coisas que não se podem garantir, esta é uma delas. Eu preferia que me dissessem que tudo vai ser feito — que o possível vai ser feito — para minorar o impacto que o destino do Novo Banco vai ter sobre os bolsos dos contribuintes. Mas não acredito nem um bocadinho que o destino do Novo Banco não vai ter nenhum efeito no bolso dos contribuintes. Mais: acho que os contribuintes vão pagar tudo aquilo que houver para pagar, embora não haja garantias de que vão beneficiar, se algum benefício houver para repartir. Não sabemos todos que o que se reparte sempre são os prejuízos e, se possível, se guardam os benefícios? Não foi sempre assim?
Sobre a opção entre vender ou nacionalizar, eu penso o seguinte: se vou ter de pagar por uma coisa, prefiro ficar com ela do que pagar para ficar sem ela. Em princípio — sublinho que em princípio. Nem sempre é preferível ficar com as coisas. Se a coisa em questão for uma granada sem cavilha, é preferível que ela esteja no bolso de outro e — mais do que preferível — que esse outro esteja bem longe de mim.
O meu problema é não saber se o Novo Banco é uma granada e, muito menos, se está "descavilhada". Alguém sabe? Ou será, em vez de uma granada, uma bomba de cheiro? É que cheira mal desde o início, desde antes do início... 
Em qualquer dos casos, não era melhor levar aquilo para uma praia deserta e proceder à detonação controlada?