quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

As boticas do senhor Pharmacia


"Pharmacia" Durão, Rua Garrett, Lisboa
Imagem: Google Street View


Que diferença fazem as minhas opções sobre o Acordo Ortográfico, se ninguém vai ler aquilo que eu escrevo?

Mas, em todo o caso, aí vai:

No tempo dos nossos avós, um campónio, bimbo, labrego, saloio… foi um dia pela primeira vez a Lisboa e, ao passear embasbacado (era também basbaque, coitado) pelas ruas da grande cidade, comentava para a legítima: "Ó Maria, há aqui um tipo em Lisboa que deve ser muito rico. É o Pharmacia (ele dizia "parmáxia", porque falava axim — ou achim). Djá bistes que aqui todas as boticas xão dele, que coija?..."

No site do Arquivo Distrital de Portalegre, que é o meu distrito, estão disponíveis para consulta livros de registo de nascimentos de há muitas décadas atrás, que foram digitalizados/fotografados para o efeito. Dei-me ao trabalho de aí procurar os assentos relativos aos meus avós e bisavós — tarefa a exigir bastante paciência —, de tal maneira que consegui saber os nomes de alguns antepassados que já andavam esquecidos nas memórias familiares. Esses assentos eram lavrados pelos párocos, já que praticamente todas as pessoas recebiam o baptismo católico e a conservatória do registo civil estava muito longe pelos caminhos de cabras de então. Os meus avós nasceram todos na década de 1880.

Nessa altura, a escrita era algo diferente da que hoje usamos, mas não apresenta nenhuma dificuldade de leitura. A palavra "pároco", por exemplo, aparece nos assentos escrita como "parocho", assim mesmo, com "ch" e sem acento.

Pois não me parece que o labrego da história ali em cima, se vivesse no final do século XIX , tivesse qualquer dificuldade em pronunciar correctamente a palavra. Talvez dissesse, em vez disso "Ó xenhor abade, porque diacho querem que lhe chame pároco?". Pároco e abade não são bem a mesma coisa, mas isso agora não interessa para o caso...

Noutros tempos, os acentos agudos serviam mesmo para agudizar e não simplesmente para acentuar. O acento estava onde tinha que estar (ou simplesmente não estava) e ninguém se enganava. As dúvidas surgiam logo de início e eram desfeitas à reguada ou puxão de orelhas, correctivos de outrora que hoje se tornaram crime, até porque às vezes se abusava.

E já agora, se mal pergunto, pode-se escrever "efectivelmente"? Se há pessoas que o dizem assim, deve ser lícito escrevê-lo. Afinal, não é essa regra básica em vigor?